Na contramão do discurso do presidente, e da tendência mundial de desprivatização dos serviços, mídia e neoliberais tentam inviabilizar empresas públicas do setor. Resistência já começou – veja quais são suas propostas essenciais.
Leia o artigo de Amauri Pollachi, diretor de Relações Externas da APU – Associação dos Profissionais Universitários da Sabesp, publicado originalmente no site Outras Palavras.
Desde os primeiros movimentos do governo de transição na área de saneamento básico, há uma inédita sucessão de artigos, entrevistas e matérias jornalísticas cujo teor é, nitidamente, de ataque a qualquer alteração legal, administrativa ou financeira no modo de prestação de serviços de saneamento básico instituído pelo governo Bolsonaro com a Lei nº 14.026, de 2020
Observe-se que não há qualquer preocupação em polemizar sobre dois dos componentes do saneamento básico definidos na legislação: a gestão dos resíduos sólidos e a drenagem de águas pluviais. O objeto dessa polêmica pública está restrito à prestação de serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, pois oferecem ampla garantia de realização de ganhos de capital durante longo prazo, assentada em base territorialmente monopolista. Esse ganho de capital é especialmente mais atraente se os serviços forem prestados em uma área com expressiva quantidade de “clientes” consolidada, concentrada e de melhor condição socioeconômica.
Aqueles que defendem a petrificação das bases legais e de gestão instituídas pelo governo Bolsonaro afirmam que com a gestão privada serão resolvidos: (i) o déficit de atendimento para 35 milhões de pessoas em água e 100 milhões em esgoto; (ii) a eficiência dos serviços; e (iii) as amarras dos entes estatais, como a Lei de Licitações e os concursos públicos. Essas justificativas não serão aqui contestadas, pois constituem-se em “cortinas de fumaça” utilizadas para esconder as verdadeiras intenções privatizantes.
O real temor do “mercado”, de “especialistas” e de “executivos do saneamento”, cujas vozes têm sido amplificadas à exaustão, é que as regras – que desde 2020 são extremamente favoráveis à realização de ganhos em menor prazo possível – sejam modificadas de forma a permitir que a prestação de serviços seja também exercida por entidades públicas, como é facultado constitucionalmente aos entes federativos.
As alterações promovidas em 2020 por meio da Lei nº 14.026 no marco legal de saneamento, instituído pela Lei nº 11.445/2007, bem como os decretos e as normas subsequentes, inviabilizam na prática a prestação pública dos serviços de saneamento e escancaram portas rumo à única direção de privatização e de financeirização da água. Aliás, um rumo que está em absoluta contramão com uma tendẽncia nítida no saneamento mundial: o movimento generalizado de reestatização dos serviços de água e esgotos.
A polêmica pública iniciou-se com a possibilidade de revogação dos três decretos presidenciais derivados da lei de 2020 (Decretos nº 10.588/2020, nº 10.710/2021 e nº 11,030/2022). Editados por Bolsonaro, todos são tecnicamente falhos, com um conteúdo discriminatório em relação aos prestadores de serviços públicos estaduais e municipais e com dispositivos que abrangem aspectos não previstos naquela lei. O Grupo de Transição (GT) Cidades do Governo de Transição indicou que a revogação desses decretos é urgente e essencial para destravar investimentos públicos e fortalecer entidades reguladoras municipais e regionais. Por óbvio, um novo decreto viria a substitui-los.
O segundo movimento do bombardeio midiático concentra-se na proposta do GT Cidades, de que as funções de apoio à regulação do saneamento básico sejam devolvidas para a Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades – SNSA, e, portanto, saiam da Agência Nacional de Águas – ANA. Essa proposta foi parcialmente inserida na MP nº 1.154, de reorganização do governo federal, não contemplando a revogação dos artigos 4º-A e 4º-B da Lei nº 9.984/2000 (lei de criação da ANA) e as menções às normas de referência da ANA na Lei nº 11.445/2007.
A forte reação provocou declarações de integrantes do governo federal de que tais alterações seriam retiradas. Contudo a alteração de subordinação da ANA, agora sob o MMA, será mantida.
Mas por qual motivo a regulação do saneamento sob tutela da ANA é tão cara ao mercado privado? A ANA não pode nem deve exercer função de regulação no saneamento básico, ao contrário do que tem afirmado a mídia de forma distorcida, pois a titularidade dos serviços de saneamento é municipal. Exerce uma atribuição que até 2020 era da SNSA: apoiar Estados e Municípios para que tenham bons reguladores. Contudo, a ANA tem desempenhado esse papel de forma amplamente favorável às empresas privadas editando normas que praticamente obrigam à privatização. Um exemplo é a proposta de norma para indenizações no término dos contratos colocada em consulta pública, em que o prestador privado terá direito à indenização maior e mais abrangente do que a prevista para o prestador público, ou seja, uma discriminação inadmissível e injustificável.
A atual direção da ANA não possui formação técnica adequada para regular as águas – função para a qual foi criada – tampouco o saneamento básico. Quase todos os seus dirigentes são egressos do extinto ministério da Economia. A gestão atual tem se esforçado em abrigar ex-funcionários do Palácio do Planalto e de ministérios para que atuem na regulação de água e esgotos sem qualquer qualificação profissional nessa temática. Por exemplo, a portaria de nomeação de um coordenador não foi adiante graças à não liberação do funcionário pela Petrobrás (vide em http://www.in.gov.br/web/dou/-/portarias-ana-de-3-de-janeiro-de-2023-456116731).
A atuação da ANA tem sido oposta a tudo que se espera de uma agência regulatória, pois é discriminatória, clientelista, ideológica e cooptada pelo mercado privado. Também não é neutra, visto a comemoração de seus dirigentes no evento de privatização da estatal de saneamento gaúcha, a CORSAN, em leilão realizado na sede da B3, em São Paulo em 20 de dezembro passado. Tampouco é eficiente, pois de 72 normas propostas em 2020, elaborou apenas duas! Além disso, a atual gestão da ANA exorbita o seu papel ao representar à PGR contra os governadores de 8 estados por defenderem as respectivas companhias estaduais e, no entendimento da agência, contrapondo-se à diretriz de privatização da lei de 2020.
Há duas manifestações públicas do presidente Lula que devem (ou deveriam) nortear as ações do governo federal em saneamento básico. A primeira, no discurso de posse, de que “a prioridade do país é combater a inaceitável desigualdade social, que se agravou nos últimos anos.” A segunda, em entrevista à TVE do Ceará durante a campanha, que “universalizar água e esgoto é responsabilidade do Estado brasileiro e que empresários privados não conseguirão realizá-la.”
Há que se romper a mítica barreira monolítica da lei de privatização do saneamento promulgada por Bolsonaro, inspirada no anacrônico modelo neoliberal e que se contrapõe frontalmente à diretriz nº 74 do Programa da chapa Lula-Alckmin: “garantir o direito à água e ao saneamento, por meio do reconhecimento da responsabilidade das esferas administrativas federal, estaduais e municipais na universalização dos serviços de saneamento básico à população brasileira e garantir a atuação das entidades públicas e das empresas estatais na prestação dos serviços de saneamento básico”.
A Carta do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS) ao presidente Lula, disponível em https://ondasbrasil.org/wp-content/uploads/2022/12/Carta-Lula-FIN-assinada-.pdf, contém um conjunto de ações voltadas ao cumprimento desses compromissos.
Nessa renovada direção rumo à garantia do pleno acesso da população brasileira à água boa e ao saneamento adequado, é preciso que o governo federal promova um amplo debate para aperfeiçoar o arcabouço legal e institucional do saneamento para:
- Revisar de imediato os decretos regulamentadores da Lei 14.026/2020;
- Rever as atribuições de apoio à regulação, quer seja na ANA, na SNSA ou em outra agência reguladora, de forma a garantir isenção, eficácia e qualificação técnica, condições hoje absolutamente descumpridas pela ANA;
- Rever a Lei nº 11.445/2007 para, entre outros itens: (i) eliminar a outorga onerosa como instrumento para a concessão da prestação de serviços; (ii) inserir o atendimento a áreas informais e rurais; (iii) promover a prestação de serviços por consórcios públicos, convênios de cooperação ou contratos de programa entre entes federados; (iv) revisar as regras e as obrigações para a regionalização de serviços..
- Estabelecer um marco regulatório para saneamento rural;
- Criar o Programa Nacional de Saneamento Indígena;
- Estruturar fontes de recursos para investimentos, eliminando o financiamento para outorgas onerosas de concessões.
- Aprovar a PEC 06/2021 que inclui, na Constituição Federal, o acesso à água potável entre os direitos e garantias fundamentais e, também, a PEC 02/2016 que insere no artigo 6º o direito social de acesso ao saneamento.
Dessa forma, acreditamos, trilharemos o caminho que possibilitará a inclusão daqueles(as) brasileiros(as) que historicamente foram alijados do acesso aos serviços de saneamento básico.
1Mestre em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC e graduado em Engenharia Mecânica e História pela USP. Está presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê, coordenador do Fórum Paulista de Comitês de Bacias Hidrográficas, conselheiro do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS) e diretor da Associação dos Profissionais Universitários da Sabesp.