O que muda, com a lei de privatização. Por que a batalha desloca-se do Congresso para as cidades e periferias. As chances de criar movimentos como os da Bolívia – ou das 265 cidades que rejeitaram, em todo o mundo, a lógica da água-mercadoria
Duas interpretações opostas emergiram a partir da última quarta-feira (25/6), quando o Senado aprovou o Projeto de Lei 4162/19, que reorganiza os serviços de abastecimento de água e saneamento no Brasil. A primeira sustenta que as mudanças, em relação ao que está em vigor, foram mínimas – e há poucos motivos para preocupação. A segunda sugere que a batalha está perdida, porque o Congresso teria entregue a corporações internacionais um setor vital para a população, e estratégico para o país.
Ambas interpretações são imprecisas e – pior – desmobilizadoras, sustenta o engenheiro Marcos Helano Montenegro, coordenador geral do Observatório Brasileiro pelo Direito á Água e ao Saneamento (Ondas). Seu ponto de vista parte de três premissas: a) A lei cria riscos gravíssimos – em especial a desestruturação de empresas públicas eficientes e a quebra dos modelos de “subsídio cruzado”, o que pode ampliar o número de brasileiros excluídos de um abastecimento digno; b) No entanto, estas ameaças não vão se materializar automaticamente. Elas dependem de decisões em cada município – o que pode alargar o debate político sobre o tema, hoje restrito a pequenos círculos; c) Tal debate é urgente e necessário, porque a privatização é péssima – mas as políticas atuais já não asseguram o direito das maiorias à água, à coleta e ao tratamento de esgotos.
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“Temo que estejamos diante de uma ‘lei cloroquina’”, diz Montenegro, que presidiu as companhias de abastecimento de água de Santo André-SP e do Distrito Federal. “A doença que ela pretensamente combate é real e gravíssima – mas o remédio não cura o paciente, e pode matá-lo”.
O engenheiro refere-se à exclusão. Segundo os dados mais recentes do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), quase 35 milhões de brasileiros, ou três vezes a população da Bélgica, não têm acesso a água tratada. Apenas 53% têm o esgoto coletado; e 76% dos dejetos gerados não são tratados, o que resulta em rios urbanos pestilentos e periferias insalubres, muitas vezes com águas servidas correndo a céu aberto ou despejadas em riachos.