Leia o artigo de Amauri Pollachi, ex-presidente da APU (1995-1999) e atual diretor de Relações Externas da Associação
Ano de 1994: a Sabesp – a maior empresa de saneamento do Brasil e uma das maiores do mundo – vivia momentos de muita incerteza. Seu modelo de gestão concentrador de decisões e poderes nas mãos de alguns poucos dirigentes ineptos e pouco afeitos à boa prática administrativa, conduzia a Sabesp para uma condição pré-falimentar. A empresa não conseguia responder às exigências da sociedade
redemocratizada e sua alta administração mostrava-se insensível aos sinais que a sociedade, os municípios e a comunidade sabespiana emitiam.
A situação estava crítica em diversos aspectos: (i) institucional, com movimentação de municípios para retomada dos serviços; (ii) empresarial, com prejuízos, dívidas elevadas e falta de pagamentos; e (ii) operacional, com falta de água, imenso déficit
ambiental e ausência de projetos e programas de investimentos.
Um forte movimento da comunidade interna – patrocinado pela APU e do qual tive a oportunidade de fazer parte – promoveu mobilizações e debates que culminaram em uma proposta para reerguimento da empresa, apresentada aos candidatos ao governo do Estado nas eleições de 1994. Antes mesmo da posse em janeiro de 1995, a direção da empresa designada por Mário Covas assumiu grande parte dessa proposta. Sua implantação iniciou-se com a reorganização alicerçada no comprometimento de 19 mil funcionários e no modelo de Unidades de Negócio
por bacias hidrográficas, revertendo aquele dramático quadro em todos os aspectos.
Não há quem possa deixar de reconhecer os avanços obtidos pela Sabesp nesses últimos 26 anos. Em todas as direções, a transformação da empresa foi marcante a ponto de vários livros e artigos dedicarem-se ao estudo de seu case de sucesso. De modo geral, os autores concluem que a coesão interna e a construção coletiva do processo de reorganização da empresa foram elementos-chave para os extraordinários resultados obtidos. Diga-se, en passant, que o modelo de gestão vigente tem sido constantemente colocado à prova: o vitorioso enfrentamento à crise hídrica de 2013-2015 é um exemplo, bastante vivo em nossa memória.
Por óbvio, para qualquer organização é saudável o permanente aprimoramento de sua gestão. Sem menosprezar sucessos é possível vislumbrar vulnerabilidades que podem – e devem – ser mitigadas ou eliminadas. Segundo as bibliografias referenciais de administração, em qualquer processo de melhoria são maiores as chances de resultados positivos quando há transparência e participação da
comunidade envolvida para a busca de soluções.
No negócio da Sabesp – a prestação de serviços de saneamento –- toda alteração e organização ou atribuições administrativas deve estar ancorada na satisfação concomitante de quatro distintas perspectivas: do cliente, do mercado, do município e do ambiente. O balanço equilibrado entre as demandas de cada uma conduz de modo mais seguro à sustentabilidade global da empresa.
Se hoje a Sabesp ostenta resultados positivos suficientes para sua sustentabilidade nestes quatro campos, por qual motivo levantam-se hipóteses que propõem uma drástica alteração organizacional que desfariam por completo o modelo de gestão bem sucedido?
É fato que a empresa possui menor número de funcionários. Também que dispõe de mais ampla tecnologia de informação que há duas décadas. Argumenta-se que os custos devem ser reduzidos (aliás, quando não devem?) e que a metade do número de funcionários de vinte anos atrás seria o suficiente para a empresa. Em minha opinião, este quadro mostra-se semelhante à pintura que se fazia de
empresas que foram submetidas à malsucedida “onda da reengenharia” dos anos 90, responsável pela decadência de inúmeras delas.
Assim como ontem – e amanhã – é válida a busca por uma estrutura organizacional ágil e horizontalizada, orientada para o trabalho por processos. Contudo, jamais poderão ser bem sucedidas estruturas que desprezam o foco no cliente, a parceria com o poder concedente e o cuidado ambiental, em favor tão somente da insólita obsessão por redução de custos. Praticar tal decisão míope faz lembrar que não é o rabo que abana o cachorro… Ademais, é vital que a delimitação das unidades operacionais da Sabesp por bacias hidrográficas seja preservada, pois deve ser valorizada como uma característica primordial para uma grande usuária de recursos hídricos com forte protagonismo na governança hídrica paulista. Seria absoluto contrassenso imaginar a destruição desse vínculo, ainda mais no momento em que a maior parte da Alta Administração está composta por acadêmicos e gestores que conceberam, estudaram ou geriram o Sistema Integrado de Gerenciamento de Recursos Hídricos do Estado de São Paulo.
Quiçá os arautos da destruição do atual modelo de gestão da Sabesp demonstrem à sociedade, aos municípios, ao mercado e à comunidade interna o contrário dessa percepção. Que retirar autonomias essenciais das Unidades de Negócio e decepar instrumentos de decisão à mão dos gestores que atuam junto ao cliente, ao município e à sociedade irá melhorar a qualidade da prestação de serviços.
Quiçá especialistas provem que reduzir custos operacionais para atender ao dobro de ligações com a metade de funcionários de vinte anos atrás tornará a empresa mais eficaz no atendimento ao cliente e ao município. Que retirar atribuições dos gestores de ponta promoverá o incremento da satisfação de clientes e municípios. Que agregar unidades por quantidade de ligações será melhor para a governança
hídrica integrada.
Quiçá consultores regiamente remunerados atestem que centralizar a gestão de empreendimentos ampliará a transparência na aplicação de recursos em investimentos. Que extinguir unidades promoverá maior eficiência no atendimento à regulação e alavancará a pesquisa e a inovação.
Infelizmente, as notícias não caminham nesse sentido. O horizonte dos estudos em curso descortina para um gigantesco retrocesso em direção a uma estrutura centralizadora que já se mostrou facilitadora de péssimas lembranças de inépcia e
más práticas administrativas.
Pela primeira vez desde o governo Fleury, a Sabesp não possui ao menos um dirigente egresso de sua casa. Assim como em 1995, é preciso aliar o conhecimento interno sobre o território e o negócio da empresa às motivações externas trazidas pelos dirigentes. É premente a abertura de amplo diálogo, com transparência e participação interna, capaz de debater alternativas e alcançar soluções que promovam a plena satisfação de todas as partes interessadas na empresa e o comprometimento da comunidade interna.